A Casa de Maurício I Het Mauritshuis (2)

Era 23 de maio de 1644 quando João Maurício saiu de Recife, iniciando a viagem de volta à Holanda. 13 navios, 1300 passageiros e, nos porões dos navios, grande quantidade de utensílios, peles, animais empalhados, penas, marfim e os resultados das obras científicas e artísticas dos colaboradores de João Maurício. No início de agosto daquele ano, após sete anos em terras brasileiras, ele voltou para a casa cuja construção tinha acompanhado por meio da correspondência com Huygens. A coleção Brasiliana foi quase toda abrigada na sua casa que, na verdade, parecia mais um palacete. Algumas peles e animais empalhados ele doou à universidade de Leiden. Os grandes quadros de pessoas típicas do Brasil, pintados por Albert Eckhout, não caberiam na casa e, em 1654, foram doados ao rei Frederico III, da Dinamarca. João Maurício recebeu em troca a Ordem do Elefante daquele país. Mais tarde se arrependeu amargamente desta doação e pediu a devolução dos quadros (!). O rei não atendeu o seu pedido, mas permitiu que um pintor fizesse cópias. Outros quadros, de Frans Post, foram doados em 1678, ao rei Luiz XIV, da França e podem ser vistos no museu do Louvre.

A casa de João Maurício (Mauritshuis) na cidade de Haia. Mais ao fundo, no mesmo lado da rua, a casa de Huygens.

Nunca vamos saber com exatidão qual o inventário completo da casa de João Maurício, simplesmente porque jamais foi feito. O construtor Pieter Post fez várias plantas e desenhos da casa, com informações resumidas sobre seu conteúdo. Há vários objetos que, logo após a chegada de João Maurício, foram doados ou vendidos. Quando ele se mudou para Cleves, ele levou consigo grande parte do inventário. Existe, sim, um inventário dos objetos encontrados na casa de João Maurício, por ocasião da morte dele.

Durante a sua vida, João Maurício doou quase toda a sua coleção Brasiliana. Oito anos após o seu retorno do Brasil já havia doado armas, móveis e esboços de quadros de Eckhout ao Grande Eleitor de Brandenburgo.

Um relato muito interessante, mas não completo, é da mão de Jacob de Hennin (1629-1688). Ele visitou a Mauritshuis entre 1679 e 1681, portanto após a morte de João Maurício em 1679. De Hennin era uma pessoa que exercia várias profissões: pintor de bons quadros, oficial de justiça e guarda-caça (jachtopziener) em Soestdijk, propriedade da família Oranje-Nassau.

Ele escreveu um livro muito interessante cujo título é: “De Zinrijke gedachten, toegepast op de vijf Sinnen van ‘s Menschen Verstand” [Os pensamentos significantes, aplicados aos cinco sentidos da inteligência humana]. Os sentidos são: a visão, a audição, o paladar, olfato e tato.

Folha de rosto.

Capa do livro.

Página 116 do livro.

Naquela época, De Hennin morava em Haia. O conteúdo do livro é uma mistura de textos bíblicos, interpretações destes textos e observações pessoais. No capítulo que trata da visão ele relata, entre outras, suas observações na natureza, como as cores das flores, a beleza dos pássaros, mas também fala de coisas bem banais. Assim ele caminha pelas ruas de Haia, observando a beleza das casas cujos donos ele aparentemente conhece. Ele chega a visitar o palácio de Frederico Henrique e, claro, visita a Mauritshuis. Obviamente ele não tinha nenhuma intenção de fazer um inventário; ele estava apenas procurando assuntos para usar no seu capítulo sobre a visão. Graças ao seu interesse, dispomos hoje sobre uma relação interessante daquilo que encontrou no palacete.
Em seu livro, De Hennin relata a sequência de sua visita ao palacete: “Em primeiro lugar vejamos as salas; a seguir os minerais, os animais e aves empalhados. Vemos logo, ao subir a escada, pintadas do natural, todas as nações pagãs e barbarescas: mouros e mouras, negros, brasileiros, tapuias, hotentotes e outros selvagens, todos esses sendo criaturas de Deus. Esses tipos de tapuias bravos são também canibais.
– Abrem, com fogo, dois buracos redondos na cara e os enfeitam com pedacinhos de madeira, madrepérola, prata e pedras.
– Untam o corpo com gordura e óleo, o que lhes dá um aspecto desagradável.
– Esses canibais, sempre alegres, cantam e dançam todo tempo. Do suco de raízes preparam uma boa bebida, que as faz dançarem e gritarem como gatos.
– Quando morrem, muitos são queimados. Os cadáveres dos outros são repartidos entre os amigos íntimos, para serem comidos.
– Vejamos ainda as elegantes salas decoradas e mobiliadas com todo luxo. Cristais de rocha, lustres de âmbar, poltronas e cadeiras em madeiras nobres do Brasil ou em negro ébano, decoradas com marchetaria de marfim, ouro, prata e madrepérola.
– No inverno e verão não vestem outra coisa que um pedacinho de pele animal para esconder ‘as vergonhas’.
– Que ricas cortinas bordadas a ouro e prata, camas de preciosos marfim e pau-brasil! Quantas plantas exóticas, armas indígenas. Ainda carabinas, tambores e trombetas e inúmeros objetos em laca, como caixas, cofres etc.
– Além, um monstruoso crocodilo ou caiman; uma cobra d’água ainda mais estranha, toda sorte de tartarugas grandes e pequenas, um rinoceronte empalhado, um pequeno elefante, muitas peles de leões, tigres, leopardos,
– Olhem o belo avestruz, o pelicano, o corvo da Índia, a cacatua, a ave do paraíso, periquitos, papagaios e tantos outros pássaros!
– Quantas rochas e minérios, que variedade de corais, brancos e vermelhos, madrepérolas, espécies raras aquáticas e conchas, ouro em pó, qual aparece nos rios, lavado e reduzido a ouro puro, proveniente principalmente do Peru e da Guiné”.
De Hennin ainda menciona chumbo, mercúrio, cobre, ferro, safiras, rubis, topázios, ametistas, lápis lázuli e vários tipos de mármore. Por fim ele cita chifres do unicórnio e rinoceronte, bem como descreve algumas ervas medicinais.
É claro que nem todos os animais e objetos citados no ‘inventário’ de De Hennin e de outros são originários do Brasil. Vários deles têm origem em outro continentes, particularmente na África, provavelmente adquiridos por João Maurício ou presenteados a ele.

Este artigo foi escrito por Johan Scheffer e publicado pela ACBH na revista De Regenboog nº 277 abril 2022.

Voltar para a página: Histórias Scheffer