A Casa da Raspadeira / Het Rasphuis

No fim do século 16, a criminalidade na Holanda tinha chegado a níveis assustadores. Os tempos eram confusos: rebelião contra a Espanha, a Reforma era seguida pela Contrarreforma e, apesar do Século de Ouro, havia muita pobreza. Por causa da guerra e da vinda de milhares de imigrantes sem trabalho, hordas de mendigos e vagabundos percorriam o país.

Mirjam Janssen, na revista Historisch Nieuwsblad (12/2018) nos oferece um olhar mais claro sobre os motivos desta migração desenfreada para a Holanda. “Quando, em 1585, o rei Filipe II da Espanha ocupou a Antuérpia (na atual Bélgica), a cidade contava 17 religiões e 94 seitas. Cem mil habitantes fugiram para a Holanda porque se recusaram a obedecer à ordem do Rei de se converter ao catolicismo. Apesar da predominância calvinista na Holanda, havia grande tolerância em relação às outras religiões. Dezenas de milhares de migrantes vieram da França. Eram os protestantes franceses, chamados huguenotes.”

Refugiados de guerra
Fonte: Sebastian Vrancx (1573-1647)

“Dos países de língua germânica vieram os migrantes braçais para trabalhar como ceifeiros (cortadores de grama) para produzir feno, para cortar turfa ou para trabalhar em olarias. A VOC (Companhia das Índias Orientais) e a WIC (Companhia das Índias Ocidentais) contrataram milhares de empregados, marinheiros e soldados. A metade deles vinha de países escandinavos, Alemanha e da região central da Europa. A caça à baleia, monopólio dos holandeses, naquela época, também empregava inúmeros estrangeiros.

As prefeituras recebiam os migrantes sem problemas, pois o crescimento natural da população era negativo: pelas más condições higiênicas havia mais mortes do que nascimentos.

Nem todos gostavam da vinda de tantos migrantes. A xenofobia (aversão a pessoas estrangeiras) reinava abertamente, demonstrado pelos seguintes exemplos: as guildas (sindicatos profissionais) somente aceitavam migrantes depois de eles terem se tornado oficialmente cidadãos e isto custava algumas dezenas de guilders (moeda holandesa da época) que muitos não podiam pagar. Judeus eram discriminados abertamente.

O prefeito Cornelis Pieterszoon Hooft declarou, em 1617, durante um discurso na prefeitura de Amsterdã, que os atos de violência e a criminalidade eram causados por imigrantes. Ele queria proibir a participação deles na política e nos conselhos de igreja, pois tais imigrantes não eram ‘verdadeiros holandeses, que são superiores em fidelidade, zelo e honestidade em comparação com outros povos’. Estas ideias ele já tinha vinte anos antes como veremos a seguir.

As autoridades de Amsterdã chegaram a proibir a mendicância, pois achavam que a atitude de amor ao próximo, expressado por dar esmolas aos necessitados, funcionava como um imã, atraindo cada vez mais Naquela época, a repressão à criminalidade acontecia geralmente com penas físicas. Cada cidade tinha o seu carrasco. Os castigos mais comuns eram o açoitamento, o decepamento de uma parte do corpo (mão, braço, orelha), a marcação com ferro em brasa, perfuração de um olho, ou a quebra dos ossos das pernas e braços.

A pena de morte era muito comum e acontecia por afogamento, enforcamento, a fogueira ou a decapitação pela espada. As execuções aconteciam com a presença do público. A permanência nas cadeias era curta; o criminoso apenas aguardava a execução da pena.

Nesta mesma época, porém, surgiu a ideia que a pena de morte e os castigos físicos talvez não fossem a solução adequada para punir criminosos ou assustar potenciais infratores. A permanente reclusão em cárceres escuros e úmidos também não recuperaria os criminosos. Foi pensado numa maneira de punição que deveria recuperar os criminosos e da qual a sociedade poderia tirar proveito.

Duas pessoas conhecidas defenderam esta ideia: o anteriormente referido C. P. Hooft (1547-1626), e o escritor, poeta, teólogo e humanista Dirck Volkertszoon Coornhert (1522-1589). Este último escreveu, em 1567, um texto (impresso apenas em 1587) com o título “Disciplina dos criminosos” (Boeventucht). Neste texto, ele expressa a ideia que as punições físicas não trazem grandes resultados e que trabalhos forçados seriam uma solução melhor.

Um detalhe curioso é que Coornhert escreveu este texto quando ele mesmo estava preso por causa de uma suposta conspiração.

O trabalho forçado poderia ser realizado como remador nas galés (antiga embarcação de guerra) ou em obras públicas. Tais punições teriam um efeito mais assustador e poderiam diminuir o número de vagabundos e criminosos.

Casa da Raspadeira, 1662.
Fonte: Gravura no livro de Melchior Fokkens

As ideias de Coornhert foram seguidas pela cidade de Amsterdã e, em 19 de junho de 1589, a prefeitura resolve dar início a uma casa de correção ou reeducação. O que ajudou a prefeitura a tomar esta decisão foi o seguinte acontecimento: o aprendiz de alfaiate Evert Janszoon, depois de ser sido torturado pelo carrasco, confessou que tinha roubado o seu patrão por duas vezes. A punição usual seria o açoitamento, mas a prefeitura achou que o rapaz, que era de boa família, poderia ser reeducado.

O convento das irmãs Clarissas foi reformado e adaptado para receber os criminosos de infrações consideradas mais leves. Criminosos “da pesada” continuavam a receber a sua pena de morte por afogamento, na forca, fogueira ou pela espada. A inauguração da primeira casa correcional aconteceu em fevereiro de 1596 e um dos habitantes era este Evert Janszoon.

Na casa correcional havia lugar para setenta presos que podiam receber castigos físicos leves e eram obrigados a trabalhar. Quem se recusava a trabalhar recebia um castigo físico mais pesado ou ficava acorrentado.

No início, o trabalho forçado consistia em raspagem de madeira dura, em particular o famoso ‘pau brasil’ (Caesalpinia echinata ou pernambuco). A imagem acima mostra como o trabalho era realizado. Cada dupla deveria produzir vinte quilos de pó de raspagem por dia. O pó era vendido para as fábricas de tinta, as quais vendiam a tinta para as tecelagens tingirem seus produtos na famosa cor vermelho-alaranjado. Nasceu assim o nome Rasphuys: Casa da Raspadeira.

Havia bastante concorrência neste mercado de raspa de madeira e, para garantir a manutenção da casa correcional, a prefeitura de Amsterdã decretou que somente a Rasphuys poderia trabalhar com o pau brasil.

A imagem mostra ainda um preso sendo castigado, uma estátua representando a Justiça, um vigilante e, à direita, a pesagem de madeira.

Poucos anos após a inauguração da casa correcional foi decidido que os presos também podiam ser ‘emprestados’ ou ‘alugados’ para serviços fora da casa correcional. As receitas dos serviços prestados, obviamente, revertiam à Casa da Raspadeira.

A casa correcional conhecia também uma ala secreta. Mediante pagamento, famílias podiam ali internar familiares libertinos ou dementes. Estes presos eram conhecidos como ‘filhos de pão branco’, porque ganhavam comida melhor do que os outros presos, que recebiam ervilhas, cevadinha e, uma vez por semana, bacalhau, carne salgada ou toucinho.

Outra ala, nem sempre confirmada pelos historiadores, situava-se no porão da casa correcional e era destinada a receber presos muito rebeldes. O espaço poderia ser alagado e o preso recebia uma bomba manual para se salvar da morte por afogamento. Nasceu aqui a expressão em holandês “pompen of verzuipen” = “bombear ou afogar-se”.

Desta Casa de Correção em Amsterdã somente sobrou o portal de entrada. Em 1896, a Casa foi demolida e no local surgiu a primeira piscina pública coberta de Amsterdã. O espaço hoje é ocupado por um centro comercial.

O portal é bastante ilustrativo e foi construído em 1603, pelo famoso arquiteto Hendrick de Keyser. Olhando de baixo para cima, ele mostra, em primeiro lugar, uma carroça carregada com pau brasil. O carroceiro usa seu chicote para dirigir os animais que puxam a carroça, respectivamente leões, um urso, um javali e um lobo. Acima do carroceiro há um texto em latim: Virtutis est domare quae cuncti pavent: é uma virtude domar aquilo que amedronta a todos. Uma tradução popular e resumida explica melhor o conteúdo do texto: “Animais selvagens devem ser domados”. Esta frase caracteriza a essência da filosofia da Casa de Correção: se animais podem ser domados, ainda que com chicote, seres humanos também podem ser domados.

Acima deste texto encontra-se, provavelmente, a imagem da santa da cidade. Sobre o joelho esquerdo, ela segura o brasão de Amsterdã e, na mão direita, um chicote. Pela palavra Castigatio ela representa a correção ou punição. Ao lado dela, encontram-se dois homens nus acorrentados.
A ideia da Casa de Correção logo foi seguida por outras cidades e até outros países, como Inglaterra, Alemanha e Suíça. Na Bélgica, país onde se fala flamengo e francês, existe até o dia de hoje uma expressão que refere àquela época: “Een gezicht hebben als de deur van een rasphuis / Avoir l’air comme une porte de prison”: Ter cara de porta de casa da raspadeira/prisão, demonstrando descontentamento, decepção ou insatisfação.

A Casa de Correção da cidade de Gante (Bélgica) era uma das maiores. Havia espaço para 1000 homens e 500 mulheres, abrigados inicialmente em cinco pavilhões. Os ‘moradores’ eram, principalmente, mendigos, desempregados, vagabundos e prostitutas. A Casa foi inaugurada em 1773 e, quase um século depois de Amsterdã, aplicava métodos mais avançados: além dos trabalhos forçados eram ensinadas profissões como carpinteiro, ferreiro, alfaiate etc. O intuito era oferecer novas chances para poder voltar à sociedade. O regime era severo: quem não trabalha não ganha comida! Um dos trabalhos era a moagem da casca de carvalho, um trabalho altamente insalubre pelo pó produzido. O pó era usado para curtir couro, pois contém alta concentração de tanino.

Um empresário, percebendo a mão de obra barata, conseguiu licença para instalar suas rocas e teares na Casa e explorava as presas de uma maneira abusiva. A vinda de um novo diretor acabou com esta exploração.

As celas eram destinadas para abrigar uma pessoa, mas havia celas com cinco presos. A moralidade, a devassidão e abusos sexuais eram terríveis o que um bispo fez exclamar: “Aqui é Sodoma!”

Desenho do pátio interno da Casa da Raspadeira
(arquivo municipal de Amsterdã)

À esquerda, nos fundos, uma pilha de pau brasil. No centro, pesagem do pó raspado; um pouco à direita, pesagem de pau brasil.

Uma das cidades contempladas com uma Casa da Raspadeira era Middelburg, capital da província Zelândia. Um dos dormitórios continha 16 jaulas, tão pequenas que o preso somente podia dormir com os joelhos dobrados. Nas segundas-feiras, à noite, os presos se divertiam de maneira malcheirosa. Neste dia era servida sopa de ervilha e, antes de dormir, os presos se divertiam num campeonato de produção do mais alto e prolongado pum!

As Casas podiam ser visitadas mediante pagamento. A ideia da reeducação de criminosos era totalmente nova e o propósito das visitas não era ajudar ou consolar os presos, mas observar este novo sistema. Famílias levavam seus filhos para mostrar qual seria o destino deles caso não se comportassem!

E entre as mulheres, não havia criminosas? Claro que havia: dos crimes cometidos em Amsterdã, a metade estava na conta de mulheres. A reeducação delas ocorria na Casa da Roca (Spinhuis) onde prostitutas, ladras, mendigas, vigaristas, trapaceiras etc. trabalhavam o dia inteiro nas rocas, costuravam roupas ou confeccionavam redes de pesca.

Este artigo foi escrito por Johan Scheffer e publicado pela ACBH na revista De Regenboog nº 266 maio 2021.

Fontes: Historiek, Wikipedia, Literatuurgeschiedenis, Vijf eeuwen misdaad en straf in Amsterdam – Gemeente Amsterdam, Geschiedenislokaal Amsterdam e Historisch Nieuwsblad.

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